terça-feira, 27 de dezembro de 2011


Sobre os momentos especiais da vida – III

Chegou o sábado. Hora de acordar para mais uma aula de violão:

Com e apesar do sono, algo ansioso para repassar aquela música da semana passada, aprendida a tanto custo, o menino estava brilhando em seu espírito. Mal teve tempo para duas mordidas na torrada que a mãe deixara repousando sobre o balcão da cozinha; ouviu o tocar da campainha, correu para escovar os dentes às pressas, cabelo ainda assanhado, vestiu a primeira camisa que estava à vista e dirigiu-se ao portão da frente para receber seu professor, que, já coroa e bem vivido, aos sábados, tomava dois ônibus para deslocar-se de Beberibe até a Várzea, onde lecionava sobre violão e emoções ao jovem aprendiz de música. O terraço já estava preparado para mais um encontro: duas cadeiras simples (tomadas emprestadas da mesinha da sala de jantar), um centro velho, de pernas enferrujadas e tampo de vidro, onde repousavam bitucas de cigarro deixadas pelo pai; alguma poeira e pêlos de cachorro no chão; as plantas misteriosamente mal-cuidadas do jardim dividiam o cenário com a luz do sol que penetrava, contundente, as frestas por entre as folhas da mangueira que servia de toldo ao terraço. Os passarinhos, distantes, pareciam querer dar sua canja na aula que estava prestes a se iniciar - tudo certo? beleza, como passou a semana? foi mola, e na escola? Idem. Ouviu as músicas? Algumas. E aí? Som. Retiraram os violões de suas capas protetoras e procederam à afinação dos instrumentos, o que nas primeiras aulas parecera monótono ao aluno, mas que não tardou a se tornar um dos rituais mais preciosos do encontro, pois era quando se fazia silêncio e sintonizavam-se as vibrações das cordas; um aperto aqui, uma afrouxada ali, e os violões pareciam se entender e havia um quê de magia nisso tudo, pensava. Algo nervoso, preparou-se para mostrar os exercícios e a música aprendida no último sábado. Tocou uma vez, repetiu o pedaço de verso, precisou de ajuda com o outro acorde, aquele mesmo que lhe fazia entortar os dedos uns sobre os outros para se conseguir um mínimo de som decente. Ainda assim, sentiu uma felicidade desmedida ao ver e ouvir que havia passado a música com dignidade, esta reconhecida pelo professor no elogio simples e sincero que dirigiu ao aluno. A esta altura a mãe interrompeu a aula para oferecer um suco de acerola, que estava especialmente honesto. Não havia mais muito tempo, mas, com sorte, haveria de ser o suficiente para se aprender mais uma nova canção, quem sabe com novos acordes, não tão difíceis quanto os da semana passada, por favor. A mãe se retirou e o menino pediu um Zé Ramalho qualquer, sabendo que era dos preferidos do mestre e lembrando que algumas músicas do profeta fizeram trilha sonora de cachaças épicas de seu amado pai. Após pensar um pouco, o professor chamou um Lá maior e iniciou uma balada antiga, escrita ao final dos anos 70, cujo poema dizia mais ou menos assim:

É aquela que fere

Que virá mais tranqüila

Com a fome do povo

Com pedaços da vida

Como a dura semente

Que se prende no fogo

De toda multidão

Acho bem mais

Do que pedras na mão...


Ao final do primeiro verso, a voz do professor pareceu falhar. O volume do violão diminuiu e o mestre baixou a cabeça. Respirou fundo, se recompôs e, com os olhos marejando de lágrimas, disse em curtas palavras que aquela música - não. Quem sabe outro dia. Presenciei ali, talvez pela primeira vez na vida, a emoção de um homem por efeito da música.  


sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

this picture is about friendship, camaraderie, companionship, chat rooms, influence, cannibalism, garage rock, film scores, bars and parties.





Imagem por ressonância magnética 3Tesla de um paciente nosso. Em destaque estruturas fronto-límbicas, as que nos tornam mais humanos e menos sinceros (quando em boas condições).  Um registro artístico-científico do encerramento do estágio na psiquiatria. Afinal, como já dizia um famoso cineasta francês, "art is science made clear".


Dezembro de 2011 em
University of Texas Medical School at Houston - Center of Excellence in Mood Disorders

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Sobre os momentos mais especiais da vida - II,

Desta vez, estava no topo do Morro do Cuzcuz, lá no alto da comunidade de São Bento de Maragogi, onde há aquela ruína de igrejinha colonial, malassombrada - há quem diga, com suas paredes desgastadas e resistentes ao tempo, sutilmente pintadas pelo lodo e pela maresia do litoral alagoano.

Lembrava-se vagamente da primeira visita que fez ao lugar, muitos anos antes, num tempo em que realidade e fantasia misturavam-se diante dos seus olhos já tristonhos, ambas iluminadas pelo pensamento mágico inerente à pouca idade e pelo espírito aventureiro que carregava consigo desde que se entendia por gente. Na ocasião, levado ao local pelo avô e por outros familiares, muito lhe marcaram os primeiros passos dados já dentro das ruínas. Sutil e cuidadosamente, avançava pelos pequenos corredores: alguns mais claros, iluminados pelo céu azul daquele fim de tarde, outros escurecidos por qualquer resto de telha mais resistente ao passar dos anos. O chão era irregular e nele misturavam-se mato, pedregulhos e - para o seu eterno espanto, viu ainda um ou dois ossos de gente. O céu escurecia e seu avô lhe chamou a atenção: "olha em direção às telhas e repara nas frestas, por onde entra alguma pouca luz". Olhou com atenção. O velho: "vê?"; diante de seu silêncio, o avô insistiu: "repara, são como flashes de luz". Não demorou muito até que se desse conta. Aquilo foi impressionante, coisa surreal de tão bonita. Olhando em direção às telhas, com suas frestas que davam vista para o céu azul escuro lá fora, percebeu pequenas faíscas cintilantes; apareciam e sumiam na rapidez de um piscar de olhos, contrastando com a escuridão etérea do pano de fundo. O velho deu uma risada ao ver o espanto do pequeno neto e falou: "é o fogo fátuo, coisa de espírito".

Desde aquele dia, com muito respeito e com certa frouxidão - não vou negar, voltei algumas vezes à igrejinha. As ruínas continuam as mesmas, com suas paredes escurecidas, habitadas pelo mato que dá caminho até os pequenos túmulos de azulejo, tão simples e honestos. Sozinho em umas ocasiões, acompanhado em outras, sempre optei pelos finais de tarde, na vã esperança de voltar a ver aqueles belíssimos fragmentos de luz mágica que tanto me impressionaram em outros tempos. Se os olhei, não vi e se os vi, não enxerguei.  Em todas as visitas, porém, encontrei, sobretudo, a mim mesmo. Lá do alto, é possível ver a imensidão do mar, através daquela paisagem apaixonante e sincera que é o litoral alagoano. Tenho certeza de que os fogos fátuos ainda habitam a igrejinha e fazem dela a sua morada, dando sua bênção aos errantes e nos iluminando aos caminhantes do céu.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011


Não faz muito tempo, estive em aventuras familiares no sertão pernambucano. Não esperava além de uma bem-vinda mudança de ares, posto que a cabeça e o coração andavam atribulados naqueles dias. Após horas de estrada, boa parte desta em péssimas condições, chegamos finalmente a Tabira, onde fomos carinhosamente recebidos por um tio em seu pequeno negócio. A localização era privilegiada, com vista para a movimentada pracinha da cidade, famosa por ser um coração comercial, social e cultural da região. Abriram-se as primeiras cervejas, matou-se alguma saudade e de lá cruzamos a fronteira interestadual para adentrar território paraibano, em plena Serra do Teixeira, rumo ao município de Água Branca, onde nasceu minha avó materna. O final de tarde não poderia ter sido mais agradável, pois à medida em que o sol baixava, o frio interiorano mostrava as caras e a conversa em família, na calçada à porta de casa, era regada a cerveja gelada e a boas lembranças. A noite sucedeu-se igualmente simples e sincera; após um jantar rico em especiarias sertanejas, todos se arrumaram e dançaram sucessos de verões passados no ginásio da cidade, ao som do intérprete local Pé Roxo - a origem do apelido me rendeu boas risadas, mas agora me foge à memória. O repertório atirava para todos os lados: de Roupa Nova a Luiz Gonzaga. Lembro que cansado e algo ébrio, ainda tentei folhear umas páginas do Saramago que carregava na mochila antes de adormecer num sono calmo e revigorante, como havia tempos não dormia. Na manhã seguinte, caminhei entre barracas e pessoas na feirinha local, que se revelou um retrato lúcido e carinhoso das tradições populares daquele povo; espantou-me ver, após tantos anos desde a minha última visita, a enorme quantidade de motos e automóveis, que agora dividiam cenário com os ainda presentes carros de boi e cavalos de montaria. O que dizer da pequena cadeia pública, situada porta a porta com o postinho de saúde da família? Isto sim, é vanguarda política – pensei. Por 2 reais, comprei um CD dos Nonatos, famosos na região e compositores de canções imortalizadas por outros artistas, conforme constatamos enquanto ouvíamos os hits já a caminho da próxima aventura: São José do Egito.

Feira de Água Branca - PB


domingo, 13 de novembro de 2011


Espero encontrar na minha vida profissional o mesmo entusiasmo com que vivi os anos de Curso Médico. Além de felicidade por mais uma etapa cumprida, sinto ainda um profundo senso de responsabilidade pela escolha que fiz, pois acredito no papel transformador das ciências da saúde. A ocasião não poderia ser mais oportuna para expressar minha sincera gratidão aos colegas e amigos pelo companheirismo diário; aos mestres, pelos ensinamentos e exemplos; aos profissionais e usuários do Sistema Único de Saúde, por fazerem dele o mais rico cenário de aprendizado para os profissionais do futuro; a Deus, pelo papo sincero de sempre e, finalmente, à minha família, pela confiança e amor depositados em mim ao longo da grande e verdadeira aventura: a vida.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Sobre os momentos mais especiais da vida - I,


costumam ser raros e marcantes; nem sempre nos damos conta de sua grandeza no ato em que ocorrem, sendo por vezes necessária a carinhosa análise retrospectiva, como acontece, por exemplo, quando lembramos do quanto foi mágico aquele dia da infância distante, quando, pequenos em estatura, mas grandes em espírito - como só as crianças sabem ser, recebemos da vida um olhar oblíquo e iluminado. São as lembranças geralmente mais ricas em texturas e símbolos. Assim foi o dia em que, ao final da aula, em uma rua vizinha ao colégio, encontrei um amigo sentado no meio fio, só e cabisbaixo. Após mais um dia de incansável zombaria por parte dos colegas, ele parecia finalmente ter sido abatido em seu ego de pequeno homem. Sendo o cara especial que era, sempre me impressionou a complacência esportiva com que recebia as pesadas brincadeiras dos demais, que insistiam em reparar nos mínimos detalhes de sua existência e disso garantir sua cota diária de diversão. Naquele dia, porém, eu notei a queda do gigante e, angustiado, não o vi entre nós ao tocar do último sino da tarde. Inventei uma desculpa qualquer e fui em sua busca. O movimento ainda era pouco fora dos muros da escola; andei por cerca de 10 minutos e estava prestes a desistir quando o avistei, de longe, na situação em que o descrevi acima. Fui ao seu encontro, chamando por ele, que permanecia imóvel e não esboçava qualquer reação. Finalmente, parei ao seu lado. Éramos apenas nós dois naquela rua deserta, iluminados pelas lâmpadas amareladas de uns postes, posto que era final de tarde e o céu já tinha um tom azul escuro. Mais uma vez chamei por seu nome, sem sucesso. O pequeno e taciturno coleguinha ignorava a minha presença. Tentei puxá-lo pelo braço e a reação foi imediata, livrando-se ele da minha mão. Perguntei o que havia acontecido e o coitado, puto da vida, ainda tentou umas palavras firmes antes de desabar em choro. “não aguento mais”, dizia soluçando. Cheguei a contra-argumentar qualquer besteira, dizer que não era bem assim e que todos tinham por ele grande apreço, apenas não o sabiam demonstrar e - minhas palavras soavam cada vez mais vazias. A ira transformou-se em pura tristeza e aquilo mexeu muito comigo. Acabei tomando a atitude mais simples e sincera possível - ao menos é o que penso hoje. Sentei-me ao seu lado e me coloquei em silêncio, talvez o silêncio mais companheiro de que já participei desde então.