Sobre os momentos especiais da vida –
III
Chegou o sábado. Hora de acordar
para mais uma aula de violão:
Com e apesar do sono, algo ansioso para
repassar aquela música da semana passada, aprendida a tanto custo, o menino estava brilhando em seu
espírito. Mal teve tempo para duas mordidas na torrada que a mãe
deixara repousando sobre o balcão da cozinha; ouviu o tocar da
campainha, correu para escovar os dentes às pressas, cabelo ainda
assanhado, vestiu a primeira camisa que estava à vista e dirigiu-se
ao portão da frente para receber seu professor, que, já coroa e bem vivido, aos sábados, tomava dois ônibus para deslocar-se de
Beberibe até a Várzea, onde lecionava sobre violão e
emoções ao jovem aprendiz de música. O terraço já estava
preparado para mais um encontro: duas cadeiras simples (tomadas
emprestadas da mesinha da sala de jantar), um centro velho, de pernas
enferrujadas e tampo de vidro, onde repousavam bitucas de cigarro
deixadas pelo pai; alguma poeira e pêlos de cachorro no chão; as
plantas misteriosamente mal-cuidadas do jardim dividiam o cenário com a
luz do sol que penetrava, contundente, as frestas por entre as folhas
da mangueira que servia de toldo ao terraço. Os passarinhos, distantes, pareciam querer dar sua canja na aula que estava prestes a
se iniciar - tudo certo? beleza, como passou a semana? foi mola, e na
escola? Idem. Ouviu as músicas? Algumas. E aí? Som. Retiraram os violões de suas capas protetoras e procederam à afinação
dos instrumentos, o que nas primeiras aulas parecera monótono ao aluno, mas que não tardou a se tornar um dos rituais mais preciosos
do encontro, pois era quando se fazia silêncio e sintonizavam-se as
vibrações das cordas; um aperto aqui, uma afrouxada ali, e
os violões pareciam se entender e havia um quê de magia nisso tudo,
pensava. Algo nervoso, preparou-se para mostrar os
exercícios e a música aprendida no último sábado. Tocou uma vez,
repetiu o pedaço de verso, precisou de ajuda com o outro acorde,
aquele mesmo que lhe fazia entortar os dedos uns sobre os outros para
se conseguir um mínimo de som decente. Ainda assim, sentiu uma
felicidade desmedida ao ver e ouvir que havia passado a música com
dignidade, esta reconhecida pelo professor no elogio simples e
sincero que dirigiu ao aluno. A esta altura a mãe interrompeu a aula
para oferecer um suco de acerola, que estava especialmente honesto. Não havia mais muito tempo, mas, com sorte, haveria de ser o suficiente para se aprender mais uma
nova canção, quem sabe com novos acordes, não tão difíceis
quanto os da semana passada, por favor. A mãe se retirou e o menino
pediu um Zé Ramalho qualquer, sabendo que era dos preferidos do
mestre e lembrando que algumas músicas do profeta fizeram trilha
sonora de cachaças épicas de seu amado pai. Após pensar um pouco,
o professor chamou um Lá maior e iniciou uma balada antiga, escrita
ao final dos anos 70, cujo poema dizia mais ou menos assim:
É
aquela que fere
Que
virá mais tranqüila
Com
a fome do povo
Com
pedaços da vida
Como
a dura semente
Que
se prende no fogo
De
toda multidão
Acho
bem mais
Do
que pedras na mão...
Ao final do primeiro verso, a voz do professor pareceu falhar. O volume do violão diminuiu e o mestre baixou a cabeça. Respirou fundo, se recompôs e, com os olhos marejando de lágrimas, disse em curtas palavras que aquela
música - não. Quem sabe outro dia. Presenciei ali, talvez pela
primeira vez na vida, a emoção de um homem por efeito da música.