segunda-feira, 1 de outubro de 2012

sobre o caráter solidário da atuação em saúde


(trecho do) Discurso pronunciado em 11 de Junho de 2012, no Teatro do Centro de Convenções da Universidade Federal de Pernambuco, por ocasião da Cerimônia de Colação de Grau da 121ª Turma do Curso de Medicina. 

(...) Pensando nesses dizeres, podemos hoje nos afirmar muito privilegiados por termos abraçado as ciências da saúde como área de atuação. Em que outro campo do conhecimento o cuidado pode ser praticado com tanta naturalidade, em sua forma mais humanista e transformadora? É impressionante: mesmo o homem mais sábio, o mais rico, ou mesmo o mais independente – não importa: quando se coloca em risco o bem maior, a saúde, todo ele sentirá algum grau de desamparo e buscará ajuda na figura de um cuidador. Neste sentido, nós, profissionais de saúde, temos a divina missão de ACOLHER e, mesmo quando a cura não estiver ao nosso alcance, haverá algo a se oferecer ao paciente, seja aliviando a sua dor, lhe instruindo sobre o seu estado de saúde ou simplesmente lhe dando ouvidos, o que muitas vezes faz a diferença para ambas as partes. Isto nos abre os olhos para o caráter solidário que pode permear a atuação dos profissionais de saúde. A solidariedade, entendida como uma atitude que permeia a prática social de cidadãos e cidadãs, pode se traduzir no nosso dia a dia como um hábito de compartilhamento de saberes e responsabilidades (Cariri et al, 2007). Esta pequena reflexão nos fará lembrar de alguns dos momentos mais transformadores que vivemos nos últimos anos. Quem não lembra daquele plantão no centro obstétrico, quando ainda verdes na medicina, mas já nobres em nossas vontades, nada podíamos fazer se não oferecer um pouco de atenção ou uma palavra de conforto às gestantes, muitas delas em sofrimento ansioso, ao passarem por momento tão decisivo de suas vidas: o do nascimento de um filho. Aqui, navegamos rumo àquela singular noite de domingo, quando recebemos uma tal dona Maria no plantão de obstetrícia; fora trazida às pressas por uma ambulância mal equipada e deixada sozinha à porta da sala de triagem. Sua face pálida transbordava angústia, deixando transparecer que o seu problema se estendida para além da dor física – via-se no rosto daquela pobre brasileira, irmã nossa, que o seu medo maior era o de perder o filho que carregava no ventre. Os chefes a examinaram e logo se evidenciou que perdia muito sangue. Pediram que fosse preparada uma sala de cirurgia, pois d. Maria seria submetida a uma cesárea de urgência por descolamento prematuro da Placenta. Presenciando tudo aquilo, meus colegas e eu tínhamos pouca noção do que se passava e, quando fiz menção de me retirar em busca do professor, fui surpreendido pela própria d. Maria, que, delicadamente, me segurou pela mão, pedindo: “Fica, doutorzinho, não quero ficar só. Tô com um medo danado de perder esse menino. Não me deixem só” Aquilo me desarmou completamente e nada pude fazer se não ficar na companhia daquela guerreira. Na ausência de conversa, nos colocamos em 
um silêncio que nada tinha de desconfortável, pois estávamos de mãos dadas (e, honestamente, talvez tenha sido aquele o silêncio mais cúmplice e companheiro que já presenciei nesta vida). O que terá passado pela cabeça de dona Maria? Terá ela lembrado dos outros três meninos que ficaram no humilde sítio em Glória do Goitá? Estará a menina mais velha cuidando bem dos demais? Será que eles vão chegar a conhecer o mais novo irmãozinho? Será menino homem, brabo que nem o pai que faleceu recentemente? Ô, que saudade sentia de casa, daquela cozinha de taipa, do seu fogão a lenha, da terra quente e do sol azulado que nasce todos os dias naquele pedaço mágico da Zona da Mata Pernambucana, onde ainda se vê um restinho de orvalho nas folhas de Cana, antes da partida para o trabalho exaustivo no Canavial... A esta altura, a inquietação de D. Maria deu lugar a uma resignada sonolência, não pela anestesia, mas pelo grande volume de sangue que perdia. Foi levada às pressas para o bloco cirúrgico, onde deu luz a um menino homem que não chorou: nasceu pálido e hipotônico. Naquele momento, se Deus existe, ele esteve ao lado da Pediatra, que com uma tranquilidade celestial, prestou os cuidados iniciais ao anjinho que acabara de chegar ao mundo - sem resposta. Quanto tempo haveria  de passar? Os segundos nos torturavam de tensão pela vida e, felizmente, não tardou a acontecer o que o fisiologista Inglês William Harvey (“De Motu Cordis”, 1628) descreveu no século XVII como  movimentos que, de tão maravilhosos, só seriam compreendidos pelo próprio Deus: os primeiros batimentos de um pequeno grande coração, que logo foram sucedidos pelo choro - o choro da vida."

Autor: Breno José Alencar Pires Barbosa